sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Perfil Caça-Rato: enforcado com lençol pelo pai, a história de um sobrevivente

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O herói do acesso do Santa Cruz à Série B desde cedo aprendeu a driblar o destino. Por duas vezes, viu a morte de perto. 'Renasceu' para realizar o sonho de infância

Caça-Rato Santa Cruz (Foto: Daniel Gomes) 
Flávio com o estilingue: a arma que usava para caçar ratos na adolescência Gomes)
Campina do Barreto, zona norte do Recife, 1999. Pelo terceiro dia seguido, a cena se repete. Acaba o treino do infantil do Internacional, time de várzea, Flavinho pega o estilingue escorado ao pé da trave, corre para um depósito de lixo ao lado do campo de terra, escolhe algumas pedras e começa a atirar nos ratos que passam. A “caça” é refúgio. O menino, por medo de apanhar, não quer treinar com os garotos do juvenil. Aos gritos, o técnico Valter Mendes exige que volte. O pedido é negado. A próxima repreensão mudará seu destino:
- Ô, meu filho, você quer ser um jogador de futebol ou um “caça-rato”?
- Quero ser um “caça-rato”, então. Saco de pancadas é que não vou ser.
Flavinho, o desbocado, virou Flávio Caça-Rato. O episódio é o retrato de uma personalidade explosiva, irônica e carismática, típica do jogador frasista e folclórico que, por ser assim, destoa do modelo padrão do futebol atual. Ninguém regula o comportamento do atacante do Santa Cruz; ninguém mede as palavras que saem de sua boca. Caça-Rato é arisco, brincalhão, provocador e, acima de tudo, espontâneo. Assim tem cavado espaço na mídia nacional.



 
Aos 27 anos, o atacante remete a um perfil fora de moda. Tem algo de Garrincha, Renato Gaúcho, Túlio Maravilha, Viola: para tudo, uma resposta na  ponta da língua. Caça-Rato, sobretudo, tem estrela. 
Há duas semanas, fez o gol do sonhado acesso tricolor à Série B do Campeonato Brasileiro, aos 42 minutos do segundo tempo, na vitória por 2 a 1 sobre o Betim-MG. O Arruda, lotado com mais de 60 mil tricolores, o reverenciou.
Quando o técnico Vica o chamou, o jogo estava empatado por 1 a 1. Na corrida até a beira do campo, Caça-Rato foi ovacionado. Minutos depois, ao marcar o gol decisivo, festejado como herói. O gol pôs fim ao inferno do clube de seis anos entre as Séries D e C. No dia seguinte, um samba pedia sua convocação para a seleção brasileira. A música repercutiu.
Caça-Rato é Seleção (Foto: Rafael Ribeiro / CBF)Ao fundo, a faixa estendida no amistoso
na Suíça
Meses antes, uma faixa exibida no amistoso entre Brasil e Suíça, na casa do adversário, já tinha dado o mesmo recado bem-humorado. E 2013 foi, de fato, o ano de Flávio - que também decidiu o tricampeonato estadual para o Santa Cruz, marcando um dos gols da vitória de 2 a 0 sobre o Sport. Detalhe: na Ilha do Retiro. Outro detalhe: no dia do aniversário do rival.
Cheio de carisma, o atacante faz piada com os pedidos de convocação. Por conta deles, já estrelou até campanha publicitária na televisão. O sorriso fácil, o ar de malandro, o cabelo descolorido - em homenagem aos tempos de carnaval nas ladeiras de Olinda -, o apelido, tudo compõe um personagem único do futebol pernambucano. Por trás deste personagem, porém, existe uma história forte. A irreverência camufla os amargos da vida. Caça-Rato, mais um sobrevivente deste Brasil que exclui, viu a morte de perto duas vezes.
O primeiro renascimento
O pai era alcoólatra. A mãe, ele e os irmãos sofriam com os ataques de fúria dentro de casa. Constantemente, o imóvel era revirado, e os três, agredidos. O casal sempre conversava, e João prometia parar de beber. Até que em um certo dia de 1994, Jacira, a mãe, empregada doméstica, precisou dormir fora. João bebeu muito. Entrou em casa e espancou Fabiana, uma de suas filhas. Flávio quis defender a irmã e sofreu.
O pai foi até o quarto, pegou um lençol e passou no pescoço do filho. Com a casa coberta por telhas, o pano foi alojado entre as frestas de madeira, e o pai ameaçou puxar, porque não admitia que um moleque de oito anos interferisse na sua ordem. Fabiana, apavorada, conseguiu pegar a chave a tempo de abrir o portão para pedir ajuda a um tio que morava na mesma rua.
MOSAICO -  Caça Rato - Vida e Obra do Xodó Tricolor (Foto: Editoria de Arte) (Montagem sobre fotos de Daniel Gomes:
- Meu pai quer matar o Flávio! - gritava.

Quando os dois chegaram, o garoto estava pendurado, sem reação. O pai foi atacado pelas costas e caiu tonto. Flávio desabou desmaiado.
Os dois nunca tiveram muito contato. Depois de beber uma quantidade absurda de aguardente em julho de 2010, João ficou completamente bêbado. Abriu um pote de pimenta, encheu a mão e colocou na boca. Foi socorrido, mas não resistiu.
- Eu não sei o que se passava pela cabeça do meu pai. No fim das contas, o vejo como um bom pai, mas eu não entendia essas atitudes - disse Caça-Rato.
 
Flávio Augusto do Nascimento é o caçula de três irmãos. O mais velho, Fábio, tem 31 anos. A do meio, Fabiana, 29. Por problemas financeiros, a mãe, Jacira, "deu" Fábio para a avó criar. Na ausência do irmão, a  irmã sempre esteve por perto. Na infância, moravam na Avenida Professor José dos Anjos, que corta o lado esquerdo do Estádio do Arruda, à beira do canal.
Flavinho tinha outros apelidos e nem sonhava ser Caça-Rato: era Jojoca, por causa de uma semelhança com um tio, irmão de sua mãe, cujo apelido era Joca. Para os pais de alguns amigos mais próximos, "Jojoca do Santa". O garoto era torcedor do Santa Cruz - a maioria da família sempre foi tricolor.
Para ir ao Arruda, em dias de jogos, Flávio driblava a mãe, que se roía de preocupação. Sem dinheiro, pedia a ajuda de algum adulto para entrar como acompanhante. Às vezes, dava certo. Quando não conseguia, se juntava com dois ou três amigos da rua e ficava próximo ao portão mais cheio. Perto da hora do jogo, no meio do tumulto, os meninos fingiam dar o bote para roubar algumas pessoas e, quando o empurra-empurra começava, se espremiam e passavam por baixo das pernas e catracas.
‘Caça-Rato – Antigas’ (Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal) 
O pequeno Flávio em mais um momento feliz de uma infância difícil
Flávio costumava colocar um calção por baixo da calça para ir à escola. Na frente do colégio, guardava a calça na bolsa e corria para o campinho de terra. O futebol sempre foi a maior paixão. Outra diversão era esperar a maré encher para tomar banho no canal do Arruda. Ao se mudar para o bairro de Chão de Estrelas, onde até hoje mora sua mãe, os mergulhos foram trocados pela música. Na terra do Mangue Beat, Caça-Rato aprendeu a tocar alfaia - instrumento de percussão - em meio às rodas de maracatu no Centro de Cultura Afro Daruê Malungo, que fica a um quarteirão da casa onde cresceu. O garoto reprovou a quarta série duas vezes. Parou de estudar na sexta. Por não conseguir colocar rédeas no irmão, Fabiana também ganhava umas palmadas da mãe.
 
Os corretivos não fizeram com que Caça-Rato desistisse do sonho. Para isso, contou com a ajuda do amigo Moacir. Das ruas de Chão de Estrelas, a dupla enxergou, nas peneiras do Sport, a chance de entrar no mundo da bola. Aprovados, depararam-se com outro problema: a falta de dinheiro para ir treinar. Nessa época os dois costumavam passar por baixo da catraca dos ônibus. Mas a parceria não durou muito. Preterido pelo então treinador da base rubro-negra, Nereu Pinheiro, Moacir deixou o clube. Flávio saiu logo em seguida. Chateados, os dois tentaram vaga no Santa Cruz, mas acabaram reprovados.
Flávio retornou em 2007 para a Ilha do Retiro, onde foi o artilheiro do Sport na Copa Pernambuco, com 25 gols, e se sagrou campeão. Queria uma chance no time profissional, mas ficou só na vontade. Ao saber que a intenção da diretoria era emprestá-lo novamente, pediu suas contas e saiu de uma vez em 2008. Justamente no ano em que o clube venceu a Copa do Brasil. De acordo com familiares e amigos, o atacante guarda uma mágoa da antiga casa, que talvez explique as grandes atuações recentes contra o Rubro-negro.
O segundo renascimento
Caça-Rato – Antigas (Foto: Reprodução/Arquivo Pessoal)Com a camisa da Cabense, clube que o acolheu duas vez Pessoal)
Depois de deixar o Sport completamente frustrado, Caça-Rato se aventurou no futebol croata, quando defendeu o NK Omis, time que disputava a segunda divisão nacional, no início de 2009. Acostumado ao calor recifense, não se adaptou ao clima e voltou. Após três meses desempregado, recebeu um telefonema de Carlos Kila, na época dirigente da Cabense, clube do Cabo de Santo Agostinho, Região Metropolitana do Recife. Era a chance de voltar ao futebol.
Mas o desligamento do clube croata não foi fácil. Ainda com vinculo, mas já integrado à Cabense, ele foi impedido de jogar durante dois meses. Desiludido, caiu na noite. Um dia, apareceu em um treino completamente embriagado.
- Eu nunca dei uma bronca tão grande em um jogador de futebol. Falei uns 15 palavrões seguidos. O que me deixava intrigado é que o Flávio não falava nada. Acabou a bronca, e ele ficou calado por uns dois minutos. Gritei perguntando se ele não tinha nada para dizer. Ele só me respondeu: "Me desculpe, o senhor é um pai para mim. Estou envergonhado." Fiquei surpreso. Ele se dizia um azarado e aceitou isso – revelou Carlos Kila, que durante os dois meses de inatividade do atleta fez questão de fazer o clube bancar os salários.
A bronca deu certo. Regularizado – e mais comportado – Flávio ajudou a equipe a não ser rebaixada, ficando em oitavo lugar no Campeonato Pernambucano. No ano seguinte, foi vice-artilheiro do time, com cinco gols. A boa fase o levou à Série B do Brasileiro, onde defendeu o América-RN. Mas a passagem pela equipe potiguar durou pouco. Dispensado, retornou a Pernambuco para defender o modesto Timbaúba. E quando tentava mais um recomeço, Caça-Rato viu a morte de perto pela segunda vez.
No segundo semestre de 2010, ele foi a uma festa com dois amigos no bairro da Campina do Barreto, periferia do Recife. Por conta de um envolvimento com a mulher de um traficante da região, não era muito bem quisto. Assim que chegou ao local, um homem se aproximou e disse que ele não devia estar ali. Caça-Rato perguntou o motivo e levou um tapa na cara, seguido de um chute na perna. Começou a discutir e depois, sem clima, decidiu ir embora. Quando deu as costas, escutou um grito:
- Corre, negão!
Não deu tempo.
O homem já apontava a arma em sua direção. O primeiro tiro pegou na perna. O segundo atingiu as costas, próximo ao pescoço. Se a bala tivesse ido três centímetros acima, hoje ele estaria tetraplégico. Um pouco mais para cima, Caça-Rato teria morrido. Os ferimentos o deixaram cerca de dois meses no hospital. Com dificuldades até para falar.
Caça-Rato marca do tiro (Foto: Daniel Gomes) 
A marca do tiro nas costas que poderia ter deixado o atacante tetraplégico ou o levado à morte
"Ah, é Caça-Rato!"
Insistente, o atacante não desistiu. Mais uma vez, foi acolhido por Carlos Kila, na Cabense. As boas atuações no Campeonato Pernambucano despertaram o interesse do Santa Cruz. Dessa vez, o atleta não precisou simular roubos para entrar no Arruda. Fora apresentado na sala de imprensa do clube, ao lado do presidente, que tentou convencê-lo a abandonar o apelido de infância. Afinal, não pegaria bem para o Tricolor um atleta com o nome de Caça-Rato. No dia seguinte, porém, ao marcar um dos gols na vitória por 3 a 0 sobre o CRB, o mandatário coral se rendeu à voz das arquibancadas.
- Ah, é Caça-Rato!
Três anos depois, o atacante tem status de ídolo no Arruda. No pós-festa do acesso, o técnico Vica o descreveu como uma arma capaz de incendiar a torcida, justificando em parte a opção por deixá-lo no banco. Tecnicamente questionável, Caça-Rato tem um estilo de jogo alinhado à sua personalidade.

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 Se está longe de ser um primor de atacante, a combinação de velocidade, ousadia e confiança compensa o olhar atravessado do torcedor mais exigente. O gol na final do Pernambucano deste ano ajudou a fortalecer a imagem do jogador que existe dentro do personagem. Cara a cara com Magrão, Caça-Rato teve a frieza dos grandes para dar um corte seco no goleiro, trocar de pé e finalizar de esquerda no canto. Minutos depois, deixou o gramado expulso, mas acabou ovacionado pela torcida tricolor em meio a uma Ilha do Retiro abarrotada de rubro-negros, na descida para o vestiário. No fim, a vitória e o título ofuscaram por completo o cartão vermelho e a ameaça de se transformar em vilão.
É aí que Moacir volta. Naquela tarde, o parceiro da época de Chão de Estrelas era mais um rival em campo. Com a camisa do Sport, o lateral viu Caça-Rato brilhar e, depois do jogo, serviu de motorista ao amigo. Os dois voltaram juntos para casa.
- Naquele dia, ele estava muito feliz, e eu chateado demais. Só o deixei em casa porque tinha prometido e ele estava sem carro. Caça estava radiante e chegou a lembrar de tudo o que passou. Só falava nas aventuras dele no futebol. Quando eu deixei o Flávio em casa, cheguei a sorrir. Mesmo muito chateado, sabia que o título tinha ido para um amigo muito merecedor - relembrou Moacir, hoje no Paraná.
sport x santa cruz Caça-Rato passa por Magrão (Foto: Aldo Carneiro / Pernambuco Press) 
Sport x Santa Cruz:  Caça-Rato mostra sua frieza ao passar por Magrão]
Aquele gol tem muito dos conselhos do amigo Dênis Marques. Caça-Rato se acostumou a ver DM9 brilhar com a camisa tricolor. A categoria, a frieza e o senso de oportunismo do companheiro sempre serviram de exemplo. A personalidade os uniu. Dentro e fora de campo, a dupla se entrosou rapidamente. Este ano, foram titulares em boa parte da temporada. Dênis foi o grande nome do Santa Cruz na conquista do bicampeonato, em 2012. A queda de rendimento na atual temporada em nenhum momento interferiu nos olhos de fã do amigo.
Caça-Rato costuma observar com atenção os movimentos de DM9 nos treinos de finalização. Com a experiência de quem brilhou pelo Atlético-PR e vestiu a camisa do Flamengo, ele orienta o pupilo. Foi Dênis, artilheiro do time nos Estaduais de 2012 e 2013, e na Série C de 2012, que ajudou Flávio a corrigir um grande problema: a conclusão a gol. É comum eles esperarem os repórteres saírem do treino para praticar chutes a gol com o campo vazio. Os ensinamentos de Dênis Marques foram postos em prática, outra vez, contra o Betim, no gol que garantiu o acesso.
- Estava escrito nas estrelas. Eu disse na concentração que quem decidiria este acesso seria eu ou o Flávio. Foi como um gol meu. Melhor até ter sido dele. Ele é um irmãozão, e quero vê-lo mais no topo ainda - disse o companheiro.
Mosaico : O gol do acesso - O dia de herói de Caça-Rato no Arruda (Foto: Editoria de Arte)(  
Montagem sobre fotos de Aldo Carneiro:
Dênis frequenta a casa do amigo pelo menos uma vez na semana, normalmente às segundas-feiras. Os dois conversam bastante, e a mãe de Flávio tem uma relação muito boa com o melhor amigo do filho no Santa Cruz. Em um pequeno móvel na sala da casa, existe uma foto dos três: Jaciara, Caça-Rato e Dênis Marques formam uma família.
A aproximação entre os dois muito se deveu às brincadeiras. Na concentração tricolor, Caça-Rato comanda o espetáculo. Os companheiros esperam para ver os seus shows, que normalmente acontecem no alojamento ou a caminho das partidas. Dênis também é da “resenha”. Depois da final do Campeonato Pernambucano deste ano, vários jogadores ouviam músicas evangélicas no ônibus. Do nada, um brega ensurdecedor começou a tocar. O DJ Caça-Rato dançou em cima de uma das poltronas. Performance “inesquecível”. Meses antes, no período de carnaval, os jogadores assistiam pela televisão ao desfile de blocos de rua. Alguns riam, e Caça-Rato não entendia o motivo. Para eles, era ridículo alguém pintar o cabelo durante o festejo.
- Mas eu já pintei muito quando era moleque – retrucou o atacante.
- Duvido que você pinte de novo – desafiou o meia Renatinho.
 
No dia seguinte, Caça-Rato chegou com o cabelo completamente descolorido, igualzinho ao da época do menino folião. O orgulho das origens é marca fluorescente na personalidade do jogador. A irreverência, idem. Antes de ser Caça-Rato, Flávio aprendeu a driblar o destino com graça.
- Acho que se eu fosse Flávio Recife, não ia ser muita coisa. Sou o Caça-Rato, e por isso o pessoal gosta de mim. De resto, sou como sempre fui. As pessoas levantam a bola, me pedem na Seleção, exageram... Mas eu estou aí para aproveitar o momento. Posso ser o Caça-Rato que o pessoal desdenha, mas venho decidindo, não é?

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